A norma e o riso
Uma das questões de fundo que me pareceram mais interessantes no Encontro Comemorativo dos 20 Anos do ILTEC foi esta: afinal, que sentido faz, hoje, falar de norma linguística?
Uma das conferencistas, Ana Maria Martins, advogou o fim da norma, pelo menos tal como foi definida no século XVIII por um conjunto de homens letrados, para quem o uso correcto da linguagem era aquele que dela faziam os membros da corte. E é fácil concordar que tal conceito de norma é, efectivamente, elitista e anacrónico.
Contudo, ao retirarmos da definição o aspecto mais desfasado da sociedade actual (o facto de ser a linguagem falada na corte), a noção de norma não se torna menos vaga e continua a ser discriminatória, porque elege como padrão a variante falada pelas classes ditas “cultas” do eixo Lisboa-Coimbra. Afinal, o que são as classes cultas, quando a cultura é um conceito tão abrangente (não há nenhum ser humano, afinal, que não viva segundo uma cultura)? E por que razão o "eixo Lisboa-Coimbra" e não o Porto, ou apenas Lisboa, ou apenas Coimbra, ou mesmo outra cidade?
Finalmente, ficaram no ar as questões principais: será que precisamos assim tanto de uma norma, nos dias que correm? Se sim, como é que poderemos definir norma de uma maneira mais democrática e actual?
Telmo Móia deu uma resposta curiosa: a norma pode ser definida de acordo com os limites do risível, ou seja, o que fica de fora é aquilo que faz rir os falantes, que encaram de imediato como ridículos, estranhos ou inadequados os usos que ultrapassam aquilo que eles, consciente ou inconscientemente, consideram correcto ou aceitável.
Assim, é o contexto, a cultura, o saber linguístico de quem comunica que determina o que é a norma. Dizer “fiz-o” em vez de fi-lo, ou “há-des” em vez de hás-de pode ser completamente desviante ou perfeitamente aceitável, dependendo dos falantes que empregam e ouvem estas estruturas.
10 comentários :
Confesso que me faz um pouco de confusão o tornar-se o há-des ou o fize-o aceitável. Considero que há que haver normas e regras, para poder haver as tais excepções à regra, tão usadas na nossa língua.
Discordo também com os limites do risível, pois quem vai à Madeira ou aos Açores ou a outra parte do país diferente daquela onde vive, pode achar hilariante e considerar que nunca dirá aquela palavra, no entanto, os locais falam assim.
Não me refiro a pronúncia e sim a palavras concretas. Posso dar o exemplo do "forrado" na Madeira que quer dizer nublado. A "cruzeta" na Beira Interior, que é um cabide, entre outras.
No caso de "palavras concretas", Maria, já estamos a falar de léxico. É verdade que o léxico varia muito, consoante as regiões, e que muitas dessas variações ficam "de fora" da norma, no sentido em que não são contempladas nos dicionários de língua.
Contudo, há muitos regionalismos que aparecem nos dicionários e que são perfeitamente aceitáveis, por exemplo, no contexto escolar. Quando falo de desvios à norma ocorrem-me sobretudo os chamados ERROS. Nesse sentido, as palavras que se usam apenas em determinadas regiões (ou as pronúncias) não estão em causa. Daí os meus exemplos: fiz-o e há-des (problemas de flexão).
Apresentei há uns dias um trabalho sobre a morte das línguas e reparei que levantei algumas "lebres". Surgiu um comentário da plateia que me deixou muito incomodado. Alguém disse que o "brasileiro" é uma forma de falar errada. Tentei explicar em poucas palavras, pois o tempo era escasso, que isso não era verdade, pois tratava-se de um dialecto diferente dos dialectos portugueses. Que todos falam de maneira diferente mas a Língua é a mesma. Tal como há o português de Lisboa, também há o português do Brasil. No final da apresentação tive uma pequena discussão e pareceu-me que não adiantou muito. Por que será que as pessoas pensam que o seu dialecto é o que está correcto???
Assim como costumam pensar que a sua raça é melhor do que as outras!... Creio que é uma tendência natural, embora nada abonatória da nossa espécie.
Entendo perfeitamente o que diz, Jorge. É uma pena que as pessoas tenham tanta dificuldade em aceitar e valorizar a diferença, seja na língua, seja noutros aspectos da vida em sociedade.
Mas a mentalidade pró-acordo ortográfico também não ajuda, porque parece pretender anular as diferenças em nome de uma unidade que é artificial e enganadora.
Sou a favor do Acordo. Uma das 8 línguas oficiais da África do Sul, o africaanse, que por acaso é a mais falada, é idêntica ao holandês. Foi a principal herança deixada pelos colonizadores holandeses naquele território. A África do Sul quis separar-se da Holanda em termos linguísticos, dando origem ao africaanse.
De facto, são a mesma língua mas, por questões políticas, separaram-se.
Se o Brasil quisesse, podia perfeitamente "proclamar" uma independência linguística, dando origem ao "brasileiro".
Assim o português deixaria de ser a 3ªlíngua ocidental mais falada do mundo. Seria, a meu ver, um desastre linguístico.
O Acordo vem dar mais força à nossa língua, fortificando a união entre as nações e povos que a falam.
Mas é uma ilusão pensar-se que vamos passar a escrever da mesma maneira, Jorge! Afinal, as variações sintácticas são significativas (pronomes que mudam de lugar, preposições diferentes...), o léxico tem inúmeras diferenças e mesmo a ortografia vai continuar a divergir. Basta pensar em registo/registro, facto/fato", aluguer/aluguel, Amazónia/Amazônia...
Diferenças irão haver sempre, tal como as há entre os dialectos do norte, do sul, das ilhas, etc. Sei que nunca iremos falar e escrever exactamente da mesma forma.
Só o acto em si já é um ponto a favor. É um momento de união de povos através de algo tão importante que é a nossa língua.
Aceito os seus argumentos e compreendo-os, mas continuo a acreditar que o Acordo só vai trazer benefícios.
obrigado :)
Pois... se irá haver sempre diferenças, a minha pergunta é esta: para quê gastar tempo, dinheiro e recursos humanos num Acordo que não serve o seu grande e honroso objectivo?
Mas atenção: eu não sou contra o Acordo, no sentido, por exemplo, em que nunca assinaria aquela petição que circula por aí. Apenas me questiono sobre a sua utilidade. Parece-me que os benefícios são utópicos e os inconvenientes claríssimos.
A resposta de Telmo Móia, sendo curiosa, é, infelizmente, impraticável. É-o, porque se por um lado eu acho até angraçado o dialecto de certos locais, por vezes o "meu dialeto" (que hoje, suponho, se aproxima à chamada "norma Coimbrã") faz rir os falantes, que encaram de imediato como ridículos, estranhos ou inadequados os usos que ultrapassam aquilo que eles, consciente ou inconscientemente, consideram correcto ou aceitável. E eu não aceito - não aceitarei - que a forma como digo joelho, vermelho ou coelho sejam considerados erros, só porque em o dialecto de Lisboa os diz de forma diferente.
Por outras palavras, a resposta de Telmo seria praticável se toda a gente entendesse a permissa base, que cada um fala no seu dialecto. Mas se o Lisboeta considera que o dialecto de Lisboa não é um dialecto mas a norma, e quem fala de Lisboa pode falar de outro lado qualquer, então ou se tem uma cisão linguística, ou se tem uma norma unificadora, que indica o que é "a norma", e o que é "o desvio".
Concordo. E apesar de o meu dialecto corresponder ao "padrão", eu também não aceito que a forma como em Coimbra, em Braga ou em Borba se diz "coelho" seja considerada errada.
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