17 junho 2022

"Volte sempre que..." - com vírgula ou sem?

Como sabemos, a vírgula pode fazer uma grande diferença em certas frases, alterando completamente o seu significado.

No caso desta mensagem do Lidl, a vírgula (que deveria ser usada imediatamente antes da palavra que) faz falta na frase, pois marca a fronteira entre a oração principal («Volte sempre») e a oração subordinada explicativa, iniciada pela conjunção que.

«Volte sempre, que já estamos com saudades.»

Por outras palavras, sugerimos ao/à cliente que "volte sempre", pois sentimos a sua falta, assim  que este/esta se vai embora.

Note-se que, neste tipo de frase, a palavra que pode ser substituída pela conjunção porque, na medida em que introduz o motivo ou explicação da oração anterior:

«Volte sempre, (por)que já estamos com saudades.»

Portanto, esta é uma boa maneira de saber se a conjunção que requer vírgula ou não: se for substituível por porque, ficamos a saber que sim.

Para que fosse correta a ausência de vírgula entre as palavras sempre e que, teríamos de ter uma frase de outro tipo. Por exemplo:

«Volte sempre que quiser.»

ou

«Venha à nossa loja, sempre que lhe apetecer.»

Nestes casos, a palavra que não é uma conjunção explicativa. Faz parte da locução subordinativa temporal sempre que e é por isso mesmo que não deve ser precedida por uma vírgula, pois esta quebraria a ligação entre os seus dois termos. 

Pode, porém, haver vírgula antes da palavra sempre: essa vírgula separa, com toda a legitimidade, as duas orações.

«Venha à nossa loja» - oração subordinante

«sempre que lhe apetecer» - oração subordinada temporal.




23 maio 2022

Conselheira é o feminino legítimo de conselheiro!



Não acham ridículo que o Word for Windows nos ofereça uma advertência gramatical tão desadequada?

Em vez de aceitar a flexão do nome conselheiro no feminino, considera que a expressão "fiel conselheira" está errada porque o adjetivo deve concordar com o nome! Ora, o adjetivo fiel é invariável, pelo que tanto se pode aplicar a conselheiro como a conselheira. 

O que o corretor não aceita, obviamente, é que haja conselheiras... daí que nos proponha, como forma correta da expressão, "fiel conselheiro". Mas, como não existe uma justificação gramatical para tal correção, oferece uma razão absurda para justificar o sexismo! Inaceitável...



 

11 abril 2022

"Ó" não é o mesmo que "oh"!

Já aqui falámos sobre a diferença entre "oh" e "ó", num breve esclarecimento publicado em 2007. 

Porém, hoje não resistimos a fazer outra chamada de atenção relativamente à grafia diferente destas duas interjeições, porque acabamos de verificar, com surpresa, que nas várias edições da obra A Maior Flor do Mundo, de José Saramago, a palavra oh está erradamente grafada, na seguinte passagem:


«Ó que feliz ia o menino!»

(Saramago, 2016, p. 17)

Não existirão dúvidas quanto ao facto de que, aqui, a exclamação expressa alegria, admiração, encantamento, emoção positiva. Portanto, a palavrinha em causa deveria estar escrita com h e sem acento agudo: oh. Só faria sentido empregar ó se houvesse um chamamento, uma invocação. Ora, o narrador está apenas a expressar o que sente, não está a dirigir-se a ninguém. Assim, a grafia correta é:


Oh, que feliz ia o menino!

ou 

Oh! Que feliz ia o menino!

Note-se que, após proferirmos a interjeição oh, fazemos naturalmente uma pausa, pelo que se recomenda o uso de pontuação logo a seguir: vírgula, ponto de exclamação ou mesmo reticências. Neste último caso, a exclamação terá um tom mais arrastado, por expressar um sentimento de melancolia, desilusão ou tristeza. Isso não se aplica neste contexto, mas as reticências poderiam, por exemplo, ser usadas aqui:

Oh… Já não fui a tempo!

Voltando à frase de A Maior Flor do Mundo… Terá sido erro do autor ou dos revisores e editores?

Não sabemos. Nem importa. Seja como for, todos temos direito ao equívoco, ao engano, ao erro – pessoas comuns e conhecidas, escritores pequenos e grandes, autores anónimos ou consagrados. O que importa é estarmos dispostos a identificá-lo e a corrigi-lo.

 

Referência: José Saramago, A Maior Flor do Mundo. Porto: Porto Editora, 2016. [O texto foi publicado pela primeira vez em 2001, pela editorial Caminho]

Imagem retirada da página WOOK, onde o livro pode ser encomendado: https://www.wook.pt/livro/a-maior-flor-do-mundo-jose-saramago/16467570

 



30 março 2022

Perseverança e não "preserverança"

O norte-americano Samuel Adams (representado na estátua de bronze que se vê na fotografia, da autoria da escultora Anne Whitney) ficou para a história, em virtude da sua perseverança patriótica e revolucionária contra as imposições da coroa britânica, em 1770.

Perseverança, sublinhemos, pois muita gente comete o erro de dizer e escrever "preserverança".

Todavia, não censuremos quem se engana! É um fenómeno natural e recorrente no uso da língua pronunciar certas palavras menos familiares (e depois grafá-las) com base numa relação analógica com outras, mais conhecidas.

Assim se explicará, talvez, que o esparguete tenha assumido aquele <r> no fim da segunda sílaba: os falantes terão pensado que o termo tem afinidade com o vocábulo espargo... Afinal,  este tipo de massa tem uma forma semelhante (cilíndrica, comprida e fina) e a terminação "-ete" faz lembrar um sufixo de grau diminutivo. Assim, do spaghetti tornado espaguete (como ainda se diz e escreve no Brasil), passámos ao esparguete, variante inicialmente condenada como uma corruptela, mas hoje perfeitamente aceite em Portugal. É que o erro ou desvio linguístico, muitas vezes, acaba consagrado pelo uso.

No caso de "perseverança", porém, isso ainda não aconteceu. Essa grafia ainda não foi legitimada pelos dicionários. O nome perseverança vem do latim perseverantĭa- e não está relacionado com o verbo preservar (essa associação é, provavelmente, a causa do erro), mas antes com o verbo perseverar, que é persistir, manter-se firme.

Não sejamos, pois, perseverantes no erro! Pelo menos, enquanto este não se legitima...