02 dezembro 2018

Filhós e filhoses - a norma e o uso... outra vez!


O José Pedro Vasconcelos tinha tido recentemente uma discussão com a Tânia Ribas de Oliveira sobre a palavra filhós: seria esta o plural (de filhó) ou o singular (sendo filhoses o plural)?

Quando me entrevistaram no programa Agora Nós, no dia 29 de N/novembro de 2018, ele aproveitou para me perguntar qual era a forma correta. Ora, eu dei a resposta que me pareceu desejada: disse que filhó era o singular e filhós o plural.
Porém, o José Pedro tinha feito umas pesquisas na Internet e descobriu que já na década de 1960 Rebelo Gonçalves reconhecia que filhoses era um plural tão usado, inclusivamente por certos escritores que reproduziam nas suas obras o discurso popular, que se podia considerar como variante. Assim, a palavra tem hoje duas formas possíveis:

singular: filhó /  plural: filhós
singular:  filhós / plural: filhoses

Isto é perfeitamente aceitável e é o que acontece numa língua viva, usada (e abusada também!) diariamente por milhões de pessoas. Como eu tinha referido, no início da minha intervenção, a língua é democrática - é o conjunto de falantes que acaba por decidir para onde vai e como vai (e isto é um facto e não uma opinião...).

No entanto, quando as pessoas me perguntam "qual é a forma corre(c)ta?", parto do princípio de que querem saber qual é a mais rigorosa, a mais antiga, a mais legítima do ponto de vista etimológico, histórico, gramatical, etc. E essa, neste caso, é filhó. Vem do latim foliōla, ou foliōlu-, diminutivo de "folha", que significava "bolo folhado". A forma filhoses (que deu origem ao singular filhós) é popular e consagrou-se pela generalização do uso equivocado (tal como esparguete, bêbado, púdico, febra e tantas outras). Aliás, como observou Carolina Michaelis, este vocábulo foi masculino e dizia-se, em tempos antigos, «não vai por aí a gata aos filhós»(1).

Em todo o caso, o que sucede é que, quando eu começo por dar como resposta à tal pergunta que "ambas as formas são possíveis", as pessoas costumam ficar descontentes e desconfiadas. "Não pode ser!", dizem. "Tem de haver uma forma mais corre(c)ta do que a outra!" Por outras palavras, tenho a sensação de que, se eu tivesse dado essa resposta, o José Pedro teria contraposto às minhas palavras a evidência de que, afinal de contas, filhó é a forma do singular mais legítima, e o plural filhós é o mais corre(c)to!



(1) - Machado, José Pedro,Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Horizonte, 1.ª edição: 1952, 6.ª edição: 1990.

Nota - apresento neste texto as duas grafias alternativas (pré- e pós-) para as palavras que foram afe(c)tadas pelo Acordo Ortográfico de 1990.

18 outubro 2018

Podemos "enveredar esforços"?

Há quem diga que vai "enveredar esforços" para atingir determinado objetivo. Será apropriada tal combinação de palavras?
Não! Trata-se de um erro que deriva da confusão entre os verbos enveredar e envidar. Se são parecidos na forma, a verdade é que o significado destes verbos é bastante diferente, assim como o modo de os utilizar em frases.

Enveredar vem de vereda, que é um caminho. Portanto, significa meter-se por uma vereda, fazer-se ao caminho, encaminhar-se. Rege a preposição por e pode ser usado em sentido literal ou em sentido figurado. Leiam-se, a título de exemplo, as frases seguintes:

a) Para poupar tempo, enveredou por um atalho.
b) Infelizmente, acabou por enveredar por maus caminhos e nunca conseguiu vingar na vida.

Envidar significa convocar e deriva do mesmo verbo latino que deu origem ao verbo convidarinvitãreUsa-se com o sentido de recorrer a esforços, empregar meios ou empenhar-se, no sentido de atingir algum objetivo. Por exemplo nas frases seguintes:

c) Vamos envidar todos os meios ao nosso alcance para combater este flagelo.
d) O Ministro garantiu que envidaria os recurso necessários para resolver o problema.

Conclui-se, assim, que dizer "vou enveredar esforços" não só é um erro lexical, porque o verbo não tem o significado que se aplicaria nesse contexto, como é também um erro sintático, uma vez que se envereda "por algum lado", mas não se envereda "alguma coisa".

17 outubro 2018

Para acabar de vez com o mau português!

Saiu hoje o meu novo livro, que faz uma abordagem diferente, mais leve e bem-humorada, à problemática dos erros frequentes. Isto porque acredito que, nestas questões de correção linguística, quem oferece explicações cai facilmente num discurso demasiado técnico, denso e maçador, que não só custa a entender, como aborrece que ouve ou lê.

Assim, nesta obra apresento diálogos "reais", ou pelo menos prováveis, que permitem perceber em que situações concretas é que essas incorreções podem surgir no dia a dia e dificultar a comunicação.

Espero que muitos leitores o considerem útil e que se divirtam com este meu novo trabalho, que apresenta ilustrações da minha irmã, Marta Leite.

Aproveito para divulgar o convite para o lançamento, que será na próxima semana, em Lisboa, na Livraria Bertrand do Centro Comercial das Amoreiras, às 18h.30m. A apresentação do livro será feita pelo meu amigo e ex-professor, Gustavo Rubim.

06 abril 2018

Podermos ou pudermos?


          Na escrita das diferentes formas do verbo poder, alternam-se as vogais o e u. A melhor forma de saber quando utilizar cada uma destas vogais ao conjugar o verbo poder é fixar a regra seguinte: quando o som da letra e é fechado (soa como o e de vera palavra escreve-se com o; quando o som da letra e é aberto (soa como o e de perto), a palavra escreve-se com u.
            Veja-se, assim, como têm um som diferente as formas que se costumam confundir, como as seguintes flexões do Futuro do Conjuntivo (que se usa em frases com a conjunção se) e do Infinitivo Pessoal (que se usa com preposições como para, de, por, etc.):

1.      Se eu puder ir, avisar-te-ei. (Futuro do conjuntivo)
2.      Para eu poder ir, terás de me dar boleia. (Infinitivo pessoal)

3.      Se não pudermos ir, será uma pena. (Futuro do conjuntivo)
4.      Estou contente por podermos ir. (Infinitivo pessoal)

5.      Se eles puderem ir, será melhor. (Futuro do conjuntivo)
6.      O facto de eles poderem ir é excelente. (Infinitivo pessoal)

        Portanto, quando tiver dúvidas, experimente dar atenção à qualidade da vogal correspondente à letra e. Se abrir mais a boca para a pronunciar, escreva a palavra com u. Se a sua boca ficar mais fechada ao pronunciá-la, escreva a forma verbal com o.


21 março 2018

De mais ou demais? Esclareçamos esta dúvida de uma vez por todas!


DEMAIS

            A palavra demais pode usar-se em vários contextos, com vários significados. Tem, antes de mais (!!), a utilização de advérbio, significando o mesmo que "demasiado" ou "demasiadamente", mas também é usada com o sentido de "muitíssimo" (qualificando enfaticamente uma ação, um modo ou uma qualidade). Nestes contextos, a palavra demais serve para modificar verbos, advérbios e adjetivos. Por exemplo, nas frases seguintes:

            (1) Ontem comi demais ao jantar. (Ou: "Ontem comi demasiadamente")
            (2) Isso é mau demais! (Ou: "Isso é muitíssimo mau!")

            É comum usar-se demais como com o mesmo sentido de "muitíssimo" (ver frase 2), mas sem referir qualquer adjetivo. Portanto, fazendo desta palavra um adjetivo:

            (3) Esse filme é demais! (Ou: "Esse filme é muitíssimo giro/bom/divertido!")

            Demais também se pode usar, como palavra só, com o mesmo sentido de "além disso", embora essa utilização não seja muito frequente. Neste caso, é talvez mais comum ouvir-se a expressão "demais a mais". Por exemplo:

(4) Não me apetece sair. Demais, estou sem dinheiro. (Ou: "Além disso, estou sem
      dinheiro")
(5) Não me apetece sair. Demais a mais, estou sem dinheiro.

            Finalmente, demais pode ser um pronome ou determinante demonstrativo, cujo sentido é idêntico a "os restantes" ou "os outros". Neste caso, é sempre precedido pelo artigo o(s). Por exemplo:

(6) O Marco e os demais rapazes do grupo ficaram calados. (Ou: "O Marco e os outros
      rapazes do grupo")

DE MAIS

            Quando falamos de quantidade depois de termos referido um nome (ou substantivo), devemos usar a locução "de mais", porque não seria lógico empregar o advérbio demasiadamente nem o advérbio muitíssimo após o nome (por exemplo, nas frases: "Pus açúcar demasiadamente no café" ou "Tenho dúvidas muitíssimas").
A locução de mais significa, então, "em número excessivo" ou "em quantidade excessiva". Nestes casos, pode ser substituída pelas locuções em excesso e em demasia, que também serve para modificar nomes. Por exemplo, nas frases:

            (7) Pus açúcar de mais no café! (Ou: "Pus açúcar em excesso no café!")

            (8) Tenho dúvidas de mais... (Ou: "Tenho dúvidas em demasia")

              Espero ter ajudado a resolver as vossas dúvidas!

07 fevereiro 2018

Consoantes mudas que já tinham desaparecido em 1945


Para quem não é desse tempo e tem curiosidade de saber que consoantes "mudas" já tinham sido descartadas da nossa ortografia em 1945, aqui fica um excerto com vários exemplos concretos.


Do Acordo Ortográfico de 1945:

Documento n.º 2, ponto 6:

c gutural das sequências interiores cc (segundo c sibilante),  e ct, e o p das sequências interiores pc (e sibilante),  e pt, ora se eliminam, ora se conservam. Assim:
1.° Eliminam-se nos casos em que são invariavelmente mudos, quer na pronúncia portuguesa, quer na brasileira, e em que não possuem qualquer valor particular: aflição, aflito, autor, condução, condutor, dicionário, distrito, ditame, equinócio, extinção, extinto, função, funcionar, instinto, praticar, produção, produto, restrição, restrito, satisfação, vítima, vitóriaem vez de aflicção, aflicto, auctor, conducção, conductor, diccionário, dístricto, dictame, equinóccio, extincção, extincto, funcção, funccionar, instincto, practicar, producção, producto, restricção, restricto, satisfacção, víctima, victórìaabsorção, absorcionista, adsorção, assunção, assunto (substantivo), cativar, cativo, descrição, descritivo, descrito, excerto, inscultor, inscultura, presunção, presuntivo, prontidão, pronto, prontuário, redenção, redentor, transuntoem vez de absorpção, absorpcionista, adsorpção, assumpção, assumpto, captivar, captivo, descripção, descriptivo, descripto, excerpto, insculptor, insculptura, presumpção, presumptivo, promptidão, prompto, promptuário, redempção, redemptor, transumpto;
2.° Conservam-se não apenas nos casos em que são invariavelmente proferidos (compacto, convicção, convicto, ficção, fricção, friccionar, pacto, pictural; adepto, apto, díptico, erupção, eucalipto, inepto, núpcias, rapto; etc.), mas também naqueles em que só se proferem em Portugal ou só no Brasil, quer geral, quer restritamente: cacto (c interior geralmente proferido no Brasil e mudo em Portugal), caracteres (c interior em condições idênticas), coarctar, contacto, dicção, facto (c geralmente proferido em Portugal e mudo no Brasil), jacto, perfunctório, revindicta, tactear, tacto, tecto (c por vezes proferido no Brasil); assumptível, assumptivo, ceptro, consumpção, consumptível, consumptivo, corrupção, corruptela, corrupto, corruptor, peremptório (p interior geralmente proferido no Brasil, mas predominantemente mudo em Portugal), sumptuário, sumptuoso; [...]