21 março 2010

Ensaio sobre o Medo

O novo trabalho de Isilda Paulo, levado ao palco pelo Grupo Artes Cénicas, em cena no Auditório da Associação de Moradores do Bairro 18 de Maio, na Outurela (Carnaxide), é um "ensaio" em duas partes, que nos convida desde logo a tomar uma posição crítica por meio do título, que é como um imperativo intelectual: "ensaio sobre", ou seja, "reflexão para reflectir". Que é como quem diz: "isto é o que eu pensei, e vocês, o que pensam?"
Unindo Brecht a Pirandello, esta peça revela-se bem mais original do que à partida poderia parecer. A vida e o teatro misturam-se num arriscado movimento de fusão, que conduz os actores a um empolgante clímax do qual nem o público sai incólume, pois não há ninguém que não esteja envolvido neste drama surpreendente, em que afinal se encena muito mais do que o medo, embora este seja o leit-motiv explicitamente eleito.
O medo, sabemo-lo, pode ter inúmeras facetas e estar relacionado com tudo o que fazemos e tudo o que somos. Não há ninguém no mundo que nunca tenha sentido medo.
Podemos ter medo de alguém em particular ou de tudo e todos os que nos rodeiam, como na Alemanha de Hitler, podemos ter medo de assumir um erro cometido e de sofrer as consequências, como os amantes adúlteros, podemos ter medo de nós próprios e do que poderemos ser capazes de fazer, em situação de crise. O medo compõe uma paleta de infinitas tonalidades que nos colora permanentemente a alma, desde os tons mais suaves, do medo que os outros sentem da nossa falta de medo, passando pelos tons vivos e fortes do medo da rejeição, de não sermos amados, até aos mais sombrios e carregados, do medo autodestrutivo, aniquilador. Porque o medo é a primeira e mais íntima forma de violência, aquela da qual somos vítimas antes de qualquer outra. Tolhe-nos a racionalidade, vira-nos contra os outros e contra nós próprios. De nada nos serve, pois a inocência torna-se ainda mais frágil, minada pela certeza antecipada da vitimação; e a culpa denuncia-se, enquanto agoniza na incerteza na sua descoberta. O medo é a nossa grande fraqueza, o nosso defeito de fabrico. E a força que possamos reunir contra ele, longe de o poder anular, será a força de o compreender.
Como é hábito, os actores percebem-se fortemente empenhados, este é um trabalho de amadores profissionais. Mas entre todos, destaco Jorge Aurélio, mais uma vez. Provavelmente, por ser o único que conheço (e mal) fora do palco. Ainda assim, tento explicar o que me entusiasma no seu desempenho: a dicção impecável, a postura séria, empenhada, que me faz sorrir, mesmo quando ele é dramático. A sua arrebatada e arrebatadora forma de ser em palco. Sem excessos, sem falhas, sem fraquezas. Sóbrio, elegante, pura e simplesmente genial. Todo o elenco, porém, está de parabéns!

 
Não desperdicem a oportunidade de ver esta peça, por apenas 5 euros, durante este mês, em Carnaxide!

4 comentários :

Jorge Aurélio disse...

"No Teatro descobri que existem duas realidades, mas a do palco é muito mais real"
São palavras de Arthur Miller que encontrei quando fazia uma pesquisava sobre a sua vida, e que escolhi para baptizar o blogue do ArtesCénicasGrupo.
Na minha estreia no Teatro, há cerca de dois anos, senti o que mais tarde viria a descobrir nesta palavras de Arthur Miller. Senti, por momentos, estar a ser mais verdadeiro em palco do que na vida. Ou quanto muito, mais esclarecido. Talvez Calderón tenha razão quando escreve que a vida é um sonho e a única coisa real é a finitude. Ouso dizer que o Palco fica no meio, por que lá abrimos os poros, como que se de vulcões se tratassem, e enchemo-lo com o que vai cá dentro. Haja disponibilidade para que tal suceda. Um fenómeno generoso para o próprio actor e consequentemente para quem nos dá a honra de nos vislumbrar da Plateia. Arriscaria até a dizer que o personagem sabe mais do actor do que o próprio actor de si mesmo.
O encenador Rui Mendes disse numa entrevista que o actor tem a possibilidade de fazer em Palco o que não pode fazer no dia-a-dia. A esta frase, eu acrescentaria o verbo ser. O Actor é em palco o que tantas vezes esconde na vida. Ou ainda, o actor descobre em palco o que nem sempre descobre na vida, a não ser que tenha a pertinência de se percorrer, de olhar para dentro, de conseguir estar em silêncio, mesmo que acompanhado. E para isso é preciso coragem para enfrentar o MEDO que surge quando se decide fazer tal percurso. O MEDO que é exclusivamente fruto das nossas mentes.

Do teu texto tão belo, claro e magnificamente escrito, e em relação ao meu desempenho, apenas consigo confirmar a minha postura séria e empenhada. Por que é desta forma que encaro o Teatro. Estou sempre ansioso pela chegada dos dias do espectáculo. Quanto às restantes palavras, registo tudo para que, nos dias de dúvida, as possa reler de forma a nunca desistir. Mas permite-me ainda que as comente da seguinte forma. O Mundo é conforme o vemos. Cada um vislumbra-o de forma diferente e com distintas totalidades. O que viste no sábado está sobretudo em ti. Encontras-te, na peça, a tua cor. Há quem encontre cores diferentes da tua. Há quem encontre até cores desagradáveis. Há quem não encontre qualquer cor. Diria que esta última é a que nos convém menos. Sobretudo, estamos ali para contar uma história que só é passível de ser contada se o actor tiver disponibilidade para gerar conflito na sua personagem. Se isto acontecer em principio os espectadores encontram as suas cores, despoletando-lhes emoções, sejam lá quais forem.
Como disseste, mal nos conhecemos. Creio que nos vimos apenas 3 vezes na vida. Fico muito feliz por saber que viste na nossa peça essa cor forte, positiva e cheia de vida que usaste para escrever tais palavras. Palavras que surgem de ti.

Um Abraço,
Jorge Aurélio

světluška disse...

Só gostaria de comentar que autodestrutivo se escreve todo junto. Não há razão de ser esse hífen.

S. Leite disse...

Jorge, obrigada. Não sei dizer mais!

Svetluska, agradeço também a sua chamada de atenção. Lapso lamentável!

JA disse...

Ora, já disseste muito.
Eu e o grupo agradecemos-te as boas e bem desenhadas palavras.

Já agora, gostaria de corrigir uma falta de atenção num trecho da minha resposta.
Queria dizer:
São palavras de Arthur Miller que encontrei quando pesquisava sobre a sua vida, e que escolhi para baptizar o blogue do ArtesCénicasGrupo.

ou

São palavras de Arthur Miller que encontrei quando fazia uma pesquisa sobre a sua vida, e que escolhi para baptizar o blogue do ArtesCénicasGrupo.

e não "...quando fazia uma pesquisava..." :)


Um abraço