05 novembro 2008

Um carácter que dá para os dois lados...


Na inocência do nosso limitado conhecimento sobre a língua que falamos, podemos andar uma vida inteira enganados sobre a pronúncia, a grafia, ou mesmo o significado de uma palavra.

Isso não tem mal nenhum. Afinal, se toda a gente se entende, há coisas bem mais importantes na vida do que andarmos a confirmar, a toda a hora, aquilo que dizemos ou escrevemos.

Mas, quando nem todos nos entendemos e começamos a discutir sobre o que está certo e o que está errado, porque uns dizem que é assim e outros dizem que é assado, é caso para dizer que... está o caldo entornado!

Gostaria, por isso, de esclarecer que a palavra carácter não serve apenas para designar o conjunto de características que constituem a personalidade de alguém, mas também, e até em primeiro lugar (por ser o seu sentido original), uma marca, um sinal gravado ou impresso numa superfície, representando um som ou uma ideia. No entanto, o plural de carácter é caracteres — que, além de divergir na sílaba tónica, também é diferente no facto de se pronunciar o c antes do t (ao contrário do que sucede com carácter, pois dizemos [karáter].

Acontece que muito boa gente prefere usar o nome singular “caracter” (com tónica na sílaba -ter e pronunciando o c antes do t) nos contextos em que a palavra se refere a uma letra impressa, reservando o carácter (com tónica na penúltima sílaba e c mudo) para as situações em que designa “personalidade”. O mesmo sucede, aliás, com a suposta “rúbrica”, a “assinatura” (que na verdade não existe), que seria diferente de rubrica (tema de um artigo ou programa). Por outras palavras, parece que os falantes não gostam que haja uma palavra com significados diferentes, arranjando maneira de a desdobrar em duas palavras distintas, cada uma com o seu sentido.

E há mal nisso?

Haver mal não há. Mas é no mínimo desconcertante, para os que usam o termo “caracter”, descobrir que, afinal, ele não existe na língua que falam. E é igualmente desconcertante, para os que têm a função de esclarecer os outros, verem-se a tentar persuadi-los de uma verdade que é pouco convincente, se não mesmo inconveniente.


4 comentários :

Anónimo disse...

Uma vez mais, os meus parabéns pelas correcções que vão fazendo (aproveitemos enquanto ainda podemos escrever «correcções», bem mais bonito, em meu entender, quedo «político» «correções»…). De facto, esta confusão entre «carácter» e «carácter» é recorrente e a dada altura dá vontade de desistir de corrigir, uma vez que quem passa por ignorante é quem diz «carácter». Coisas…
Aproveito para apresentar uma dúvida para a qual neste momento não encontro resposta. Estou a traduzir um parágrafo sobre a cidade grega e eis que surge a dúvida «angustiante». Fico sem saber se devo dizer «a cidade É diversas coisas ao mesmo tempo» ou «a cidade SÃO diversas coisas ao mesmo tempo». Beijo-lhes as mãos se me retirarem este peso. Obrigado

S. Leite disse...

Ui... a concordância do verbo SER é um verdadeiro bico-de-obra!
Eu diria que, tendo em conta o uso, ambas as versões são possíveis.
Tanto é lícito considerar "a cidade" como sujeito (até porque está à cabeça da frase) e fazer concordar com ela, em número (singular), o verbo SER («a cidade é diversas coisas»); como estabelecer a concordância esperada nestes casos, que é flexionar o verbo ser no plural (quando um dos elementos, sujeito ou predicativo, está no plural): «A cidade são diversas coisas». Penso que se trata de um daqueles casos em que deve imperar a sensibilidade e o bom senso do falante, mais do que a cega sujeição a uma suposta regra gramatical.
Gostaria de lhe poder dizer o que prefiro, para assim me comprometer definitivamente com uma das opções, mas não consigo. Talvez me falte sensibilidade, bom senso, ou ambos!

Anónimo disse...

Como diria um amigo meu, “obrigadérrimo” pela resposta. Concordo consigo que a flexão do verbo «ser» é um bico-de-obra (por isso procurei ajuda) e agradeço a sua resposta, compreendendo que a opção por uma das versões possíveis tem mais a ver com a sensibilidade que com o rigor purista da norma. Em casos idênticos, optei sempre por colocar o verbo SER no plural, mas desta vez hesitei, talvez pela exigência que me impus de não me deixar seguir pela solução do «parece-me que…». Esperemos que a minha escolha final reflita uma sensibilidade aceitável e agradável. E que, logicamente, não me tire o sono….

Vanda disse...

Caro Nuno Silva desculpe intrometer-me mas não poderia encontrar forma de colocar uma virgula a seguir à expressão «a cidade»?