Quem tem e quem não tem medo de ter medo?
Na minha actividade enquanto docente, tenho concentrado boa parte do meu esforço pedagógico em ajudar os alunos a fazerem um percurso que os leve da inconsciência e da despreocupação face aos erros que cometem, na oralidade e na escrita, ao gosto pelo desafio que as situações do quotidiano lhes colocam, no que respeita à distinção entre o certo e o errado, a norma e o desvio.
Basicamente, tento levá-los a considerar que a forma como se fala e escreve é importante, e não indiferente, porque transmite uma imagem de nós que pode ser positiva ou negativa; e procuro transmitir-lhes a ideia de que, se tivermos consciência das nossas limitações e dificuldades, estaremos mais perto de as resolver e de melhorar o nosso desempenho. Explico-lhes, portanto, porque devem passar da atitude de “ah, eu nunca meto acentos” ou “eu nunca sei onde é que devo meter acentos” para a atitude de dizer “se há uma maneira de saber que palavras devem levar acentos e porquê, então eu quero saber qual é!”
Este caminho, que tento levar os alunos a percorrerem, através de actividades e exercícios sempre executados com bom humor e uma atitude essencialmente optimista, implica a passagem por um estádio intermédio – que tento que seja o mais breve possível –, que corresponde à fase em que, tendo tomado consciência da quantidade de erros que cometem, contrariamente ao que pensavam, os alunos têm medo. Medo de errar, medo de dizer ou escrever mal uma palavra ou uma frase, medo de passar a vergonha de assumir, perante si e perante os colegas, que afinal não usam correctamente a sua língua materna.
É uma fase que me faz pensar nas situações de perda, em que a dada altura se passa pela negação, pela incapacidade de aceitar a perda (neste caso, perda de confiança em si), porque muitos alunos demonstram certa falta de à-vontade perante o desafio de distinguir, por exemplo, entre o correcto e o incorrecto, ou perante a necessidade de confessar o desconhecimento do significado de certas palavras. Sentem-se inseguros, incapazes de acertar, e por isso, simplesmente, fazem outra coisa qualquer em vez de participarem na aula: mais ou menos discretamente, dedicam-se a estudar outra disciplina, a consultar o e-mail, a passar apontamentos. É como se assobiassem para o lado, escolhendo ignorar aquela oportunidade de melhorarem e voltarem a ganhar confiança na sua capacidade – não para não falhar, mas para aprender a evitar as falhas. Ora, o medo de falhar que cala e faz cruzar os braços é, como sabemos, o pior inimigo da aprendizagem – ou um inimigo pelo menos tão inconveniente como o orgulho em ser ignorante.
Foi da percepção deste medo que surgiu o título do nosso livro de exercícios (Quem Tem Medo da Língua Portuguesa?), que quisemos que soasse como um desafio convidativo, uma proposta lúdica. Não a concebemos apenas para os que conseguiram ultrapassar a fase da negação (ou para os que não passaram por ela, porque felizmente também há casos desses!), não é só para os que passaram a considerar cada exercício, cada teste, como uma excelente oportunidade para verificarem o que sabem e o que ainda não sabiam (e que passarão rapidamente a saber), para os que respondem, sem hesitar: “eu não!”. O livro é também para os outros, para todos, porque com ele esperamos fazer surgir, ou estimular, o prazer de falar e escrever com correcção e rigor.
Nota: este texto não foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico porque não gosto dele e ainda posso fingir que não existe (estou em fase de negação, mas sem medo).
Nota: este texto não foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico porque não gosto dele e ainda posso fingir que não existe (estou em fase de negação, mas sem medo).
2 comentários :
Muito bem! Eu que,ao longo de quase quarenta anos,tanto me esmifrei para ter alunos minimamente competentes na nossa Língua, aprovo e subscrevo o que acabei de ler.
Mas...não há mesmo volta a dar, pois não??
Aproveito para vir aqui , de vez em quando, inspirar-me.
Obrigada,
Patrícia Portugal
Patrícia,
Não sei se há ou não volta a dar. Sei que, juridicamente, é ainda possível. Sugiro-lhe que, se ainda não o fez, se informe sobre a Iniciativa Legislativa de Cidadãos em curso (ilcao.cedilha.net) e, se concordar com o seu teor, que a assine e divulgue. Assim, pelo menos fica com a sensação de que, se havia algo que podia ser feito, fê-lo e deu o seu contributo.
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