Com o pé na argola da sintaxe
É fácil pormos o pé na argola da sintaxe, porque ela nos ilude constantemente com armadilhas muito bem montadas.
Num documento do Ministério da Educação, por exemplo, as autoras escrevem esta frase: «as tentativas infantis de escrita inventada [...] levam as crianças a analisarem as palavras para decidirem quantas e quais as letras que, do seu ponto de vista, são adequadas escrever.»
Penso que nenhum dos leitores passa por esta frase sem a achar estranha, porque aquele final («são adequadas escrever») não soa lá muito bem. Contudo, e mesmo assim, deve haver quem se interrogue sobre a sua correcção. Porque já sabemos que, frequentemente, o que soa "mal" está correcto. Por isso mesmo, há quem opte, como as autoras, por deixar operar a hipercorrecção, elegendo como versão preferível da frase (entre «quais as letras que [...] são adequadas escrever» e "quais as letras que é adequado escrever") aquela que incorre na falha gramatical.
Mas, se a frase que soa pior é a escolhida, há decerto um bom argumento que o justifique. Esse argumento será a concordância entre o adjectivo adequado (que é flexionado em número e género, adequadas) e o nome letras, que parece exigir essa concordância.
Acontece, porém, que o verbo escrever é que comanda a flexão do adjectivo, pois aqui é o sujeito da oração «que é adequado escrever», na qual pronome que representa a expressão «quantas e quais as letras» da oração anterior. Os restantes elementos são: sujeito (escrever), verbo (é) e predicativo (adequado). Ora, se o sujeito da frase é um verbo no infinitivo, naturalmente o predicativo que com ele concorda só pode estar no masculino singular.
Terá um falante comum de saber tanta gramática para optar pela concordância correcta? Não. Bastar-lhe-á tirar a palavra "que" à oração para perceber de imediato que a sequência original não faz sentido: *são adequadas escrever. Ou, invertendo a ordem dos elementos, para facilitar mais ainda: *escrever são adequadas.
1 comentário :
Leio o português como o meu língua segunda, e chegando ao inglês nao acharia a frase primeira estranha porque em inglês a frase inteira seja uma frase adjectivo que modificar o substantivo "quantas e quais" que fica no plural. Agradecimentos para explicar esta diferença e estou feliz que encontrar este blogue!
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