Porque interrogativo?
Nota prévia: este é um assunto linguístico bastante controverso, pelo que respeito quem não concorde com a minha posição.
Passo a enunciar os argumentos a favor da existência de um porque interrogativo:
Factos históricos
A palavra porque provém da forma latina quare, palavra composta (qua + re = por que motivo, por que causa), mas sempre escrita como uma só palavra. Século XV: porque.
Factos lexicográficos
Vários dicionários de referência registam porque como advérbio interrogativo: Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Dicionário da Porto Editora, Dicionário da Texto Editores, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: “porque ocorre com valor circunstancial, expressando circunstância de causa, em frase interrogativa directa ou indirecta”.
Factos literários: abonações de grandes escritores portugueses
- Fernão Lopes, Crónica de D. João I: “Ó Deus, porque te prougue leixar um rei tão só e tão desemparado de tantos e bons como hei perdidos! (…) Ó Senhor, porque me leixaste vencer?”
- Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra: “Joaninha, Joaninha, porque tens tu os olhos verdes?”
- Eça de Queirós, Os Maias: “Porque não tens tu voltado aos Gouvarinhos?”
“Porque vieste tão tarde?
- Bernardo Santareno, O Judeu, “Porque… porque somos tão desgraçados?!...”
Factos linguísticos
A palavra advérbio tem origem na forma latina adverbiu (junto ao verbo) e tem por função modificar um verbo, um adjectivo, outro advérbio ou uma frase, exprimindo diferentes valores: tempo, lugar, modo, causa, etc.
Em português, existem pronomes e advérbios que introduzem frases interrogativas, sendo que cada um exprime um valor semântico diferente:
- Quem (= «que pessoa») Quem chegou?
- Que (= «qual pessoa/coisa») Que compraste?
- Onde (= «em que lugar») Onde estiveste?
- Quando (= «em que altura») Quando chegaste?
- Como (= «de que modo») Como vieste?
- Porque e Porquê (= «por que motivo») Porque faltaste? / Faltaste porquê?
Se em perguntas que exprimem circunstância de causa optássemos pela expressão por que, estaríamos perante uma preposição + um pronome interrogativo, logo, substituível por outro pronome - qual, por exemplo. O resultado seria claramente agramatical: Por que chegaste atrasado? = * Por qual chegaste atrasado?
Por todos estes argumentos, parece-me legítimo o uso de porque enquanto advérbio interrogativo.
9 comentários :
Ao ler este post tive a sensação de estar numa das nossas aulas de sintaxe. Explicação clara e concisa.
Cara S. Duarte,
Antes de começar, alguns pontos prévios. Visito o blogue há alguns meses e o interesse que encontro em lê-lo justifica a competência que considero ter quem nele escreve. Não tenho por hábito comentar, pois as minhas visitas são, por norma, fonte de aprendizagem e não de debate. Não sou linguista nem tenho competência para discutir grande parte dos assuntos aqui tratados. Acontece, contudo, que reflicto sobre esta questão há já bastante tempo, tendo juntado razões suficientes para que não me restem dúvidas sobre ela. Quanto ao facto de não ter assinado os comentários anteriores, julgo que se trata de algo irrelevante. Assinar como Anónimo ou com outro nome qualquer vai dar ao mesmo. Uma vez que não sou conhecido, essa assinatura é apenas uma etiqueta cuja única virtude é facilitar a distinção entre os diversos anónimos que comentam. Quanto a este texto, dada a aparente impossibilidade de se chegar a uma conclusão definitiva sobre o assunto, justificava-se, creio, uma exposição não só dos argumentos a favor de um “porque” interrogativo, como também dos argumentos contra. É isso que tentarei fazer de seguida, tentando denunciar os problemas que cada um dos argumentos a favor colocam, uma vez que argumentar não é só apresentar razões que justifiquem uma determinada tese, mas também apresentar razões que anulem as razões que tentam justificar a tese contrária.
ARGUMENTOS A FAVOR
1) O primeiro dos argumentos apresentados era vago e pouco mais que uma estipulação arbitrária de uma regra. Defendia esse argumento que se deve usar “porque” em perguntas sempre que se segue um verbo, como em “Porque hesitas?”, e “por que” sempre que se segue um substantivo, como em “Por que motivos te afastaste?”. As razões que levam a esta estipulação estão omissas, o que faz do argumento algo pouco interessante.
2) O segundo dos argumentos usados para defender um “porque” interrogativo prendia-se com a necessidade de distinguir interrogações que pressupõem causa de interrogações que não o pressupõe. Assim, a pergunta “Porque esperas?” impunha uma resposta do género “Espero porque me disseram para esperar.”, enquanto a pergunta “Por que esperas?” impunha uma resposta do género “Espero por ele.”, sendo que, no segundo caso, a preposição “por” é regência do verbo esperar. Em desfavor deste argumento, é possível defender que não há qualquer necessidade lógica de distinguir as duas coisas. O argumento, no entanto, tem ele próprio uma terceira forma que acaba por torná-lo absolutamente paradoxal. Em construções com substantivos como “motivo” ou “razão”, o correcto é utilizar “por que” com um valor causal, como em “Por que razão não vieste?”, sendo que a explicação é que o “que” aqui é um pronome interrogativo adjunto (chama-se adjunto por vir junto dum substantivo, ligado a ele pelo sentido). Ora, o “por que” pode então funcionar também com um valor causal, logo a distinção que este argumento procura promover deixa de ser eficaz. Mais uma vez, não parece existir qualquer motivo para que, quando se segue um determinado tipo de substantivos, deva ser utilizada uma construção diferente. Mais uma vez, parece uma estipulação arbitrária.
3) Outro dos argumentos consiste em defender que “porque”, como muitas das palavras em português, pode pertencer a classes gramaticais diferentes. Assim, poderia ser conjunção causal e advérbio interrogativo. É evidente que essa é uma possibilidade da língua. É necessário, contudo, que isso faça sentido. Adoptar uma palavra existente e, modificando-lhe o sentido, pretender que assuma uma nova função tem de obedecer a um critério lógico. Parece-me totalmente ilógico adoptar uma palavra para exercer funções para as quais já existem palavras ou conjuntos de palavras que as exercem. Havendo “porquê” e “por que razão” para transmitir a ideia de causa em perguntas, não faz sentido nenhuma outra palavra.
4) Contra a ideia de que toda a pergunta iniciada por “por que” existe uma causa, explícita ou implícita (com substantivo explícito, como em “Por que razão isto aconteceu?”, ou estando ele implícito, como em “Por que fizeste isso?”), argumenta-se que a ausência do substantivo é motivo suficiente para que ele não esteja implícito. Contra este argumento, basta pensar, por exemplo, em figuras de retórica, nas quais, em grande parte, não se explicita o que se diz. De repente, uma ironia, uma metonímia, uma metáfora, deixam de poder existir. Todas as palavras têm implícito um significado, mesmo as mais pequenas. Repare-se no seguinte exemplo: “De que é feito este tecido?” A frase é perfeita e compreensível. A pergunta, no entanto, pressupõe uma resposta a algo que não está lá, ou seja, ao material de que é feito o tecido. A pergunta é igual a “De que material é feito este tecido?”. A preposição “de”, sendo regência do verbo (Resp: “Este tecido é feito de linho.”), introduz imediatamente a noção de matéria ou material, não sendo por isso necessário explicitá-lo através de um substantivo, ficando este claramente implícito. O mesmo se passa em construções com “por + que”: “Por que tiveste o acidente?” é equivalente a “Por que razão tiveste o acidente?”. O facto de a primeira pergunta não explicitar o substantivo que denota causa não importa, uma vez que a preposição “por” pode introduzir a noção de causa. Penso que o principal problema de quem defende um “porque” interrogativo se prende com a incapacidade de perceber que “por”, por si só, pode introduzir a noção de causa. Daí necessitarem de conceder a uma conjunção causal uma função interrogativa. Mas isso não é verdade. O exemplo seguinte deverá dissipar todas as dúvidas. Existe em português uma coisa engraçada que é a possibilidade de todas as orações subordinadas substantivas, adjectivas e adverbiais terem, além da forma desenvolvida, uma forma reduzida. Limitando-nos agora àquilo que nos interessa, a expressão de causa, a oração subordinada adverbial causal (com nexo subordinativo e com o verbo num tempo do indicativo ou do conjuntivo), como em “Tive o acidente porque adormeci.”, pode ser substituída pela sua forma reduzida (sem nexo subordinativo e com o verbo no infinitivo, no gerúndio ou particípio passado), introduzida precisamente pela preposição “por”: “Tive o acidente por ter adormecido.”. Assim, a resposta a uma pergunta que pede causa pode ser dada através de uma conjunção causal como “porque”, que introduz uma oração subordinada adverbial causal, ou através da preposição “por”: “Uso este fato por me ficar bem”; “Não fiz os trabalhos por me ter esquecido”. Quando se pergunta “Por que + alguma coisa”, pretende-se uma resposta do tipo “Por esta ou por aquela razão”. Fica assim evidente que a preposição “por” pode, em determinados casos, conter uma noção de causa, e que, ao juntar-se ao pronome interrogativo “que”, pode formar uma locução adverbial que, implicitamente, pede causa.
5) Argumenta-se que o étimo latino da palavra é “quare” (por que motivo) e sempre escrito numa só palavra, mas esquece-se que, quando muito, “quare”, em latim, corresponde ao “porquê”, que é o advérbio interrogativo de causa por defeito e não a “porque”.
6) A atestação do “porque” como advérbio interrogativo em vários dicionários, uns reputados, outros não tanto, por si só é irrelevante. Além de haver outros dicionários, uns reputados, outros não, que não atestam a palavra como advérbio interrogativo, a simples problemática em torno do assunto terá levado a que alguns autores a atestassem.
7) O argumento das abonações, então, tem inúmeras falhas. Para justificar a existência de uma palavra porque um determinado autor a empregou é preciso cautela. Primeiro, nenhum autor, por muito reputado que seja, é uma autoridade em termos linguísticos. Segundo, de certeza que haverá autores que optaram pela forma “por que”, havendo portanto abonações possíveis nesse sentido. Terceiro, porque fica sempre a dúvida se a palavra empregue foi escrita pelo autor ou uma alteração editorial. Quarto, a história da literatura está cheia de exemplos de violação de regras gramaticais. Quinto, a normatização da língua escrita é uma coisa moderna, o que faz com que abonações de autores do século XIX não possam servir para regulamentar o que quer que seja. Só para dar um exemplo de como um autor (por sinal um que tinha preocupações grandes com a língua) rejeita algumas normas, Fernando Pessoa, já depois do Acordo Ortográfico de 1911, afirmava que continuaria a utilizar, em alguns casos, o grafema “y”, além de defender uma ortografia mais próxima da etimologia. As abonações jamais podem servir como argumento para demonstrar uma regra. Podem ser úteis para ilustrar o funcionamento de algumas palavras, mas nunca para estipular a sua validade.
8) Argumenta-se ainda que uma pergunta introduzida por “por que” (preposição “por” + pronome interrogativo “que”) não faz sentido uma vez que, substituindo o pronome interrogativo por outro pronome interrogativo, a frase fica agramatical: “Por que chegaste atrasado?”, “Por qual chegaste atrasado”, “Por quantos chegaste atrasado?”. Ora, este argumento não faz qualquer sentido pelo simples facto de cada um dos pronomes interrogativos ter uma função distinta. Uma frase iniciada por um pronome interrogativo não pode, pura e simplesmente, ser substituída por uma frase iniciada por outro pronome interrogativo sem que se modifique o seu sentido. “Que” não é sinónimo de “qual”. Assim, substituir o “que” na frase “Que pretendes fazer em relação a isso?” por “qual” daria algo como “Qual pretendes fazer em relação a isso?”, igualmente agramatical. Não se pode, portanto, substituir um pronome interrogativo por outro e presumir que a frase fica igual. Logo, este argumento é falacioso. Além disso, este argumento anularia igualmente as interrogações iniciadas pela construção “por + que + substantivo (razão, motivo, etc.)”, coisa que é aceite. Assim, “Por que razão não vieste?” daria lugar a “Por qual razão não vieste?”, igualmente agramatical.
9) Todos os argumentos anteriores parecem-me, portanto, falaciosos ou insuficientes, tendo demonstrado que não podem ser mantidos sem uma dose considerável de boa vontade. Há, no entanto, um argumento que não me foi apresentado e que, julgo, seria o melhor argumento para defender a tese do “porque” interrogativo. O advérbio interrogativo de causa por excelência é “porquê”. Acontece, porém, que “porquê” tem um uso restrito (por questões de prosódia, creio), e só pode ser usado em final de frase ou em início quando a frase não tem o verbo expresso ou quando o verbo vem no infinitivo. Ora, esta restrição de uso é parecida com a restrição de uso que o pronome interrogativo “quê” tem. Assim, “quê” também só pode ser utilizado em fim de frase (“Disseste o quê?”) ou isoladamente (“Quê?”; “O quê?”). Poder-se-ia alegar, portanto, que a restrição de uso de “quê” criara a necessidade de outro pronome interrogativo igual, embora átono (“que”), mantendo a língua dois pronomes com a mesma origem e com usos idênticos: “Disseste o quê?” é o mesmo que “O que disseste?”. Continuando o argumento, poder-se-ia defender, então, que, tal como a língua, por questões de necessidade, manteve os pronomes interrogativos “quê” e “que”, também poderia, pelas mesmas razões, manter “porquê” e “porque” como advérbios interrogativos, uma vez que “porquê” tem um uso restrito. Assim, tal como seria igual dizer “Disseste o quê?” ou “O que disseste?”, seria igual dizer “Fizeste isso porquê?” ou “Porque fizeste isso?”. Este é um argumento fortíssimo e espanta-me um pouco que não tenha sido usado. Acho que há forma de contorná-lo, mas não deixa de ser um argumento que levanta um problema interessante. Tentarei resolvê-lo mais à frente, aquando da exposição dos argumentos contra o uso de “porque” interrogativo.
ARGUMENTOS CONTRA
Fui apresentando, ao longo da discussão, argumentos contra o “porque” interrogativo, quer sob a forma de refutação de argumentos a favor, quer sob a forma de argumentos contra, mais propriamente. Aquando da exposição acima dos argumentos a favor, ficaram já expostos também alguns dos argumentos contra. Ainda assim, tentarei aqui expor todos os argumentos contra de uma forma ordenada e clara.
1) Os étimos de “porquê” e de “porque” são completamente distintos. As conjunções do latim não correspondem exactamente às do português e afirmar que uma determinada conjunção em latim formou a nossa conjunção causal não é, de todo, correcto. “Porquê” é formado pela junção de preposição “por” com o pronome interrogativo “quê”, enquanto “porque” é formado pela junção da preposição “por” com a conjunção “que”. Ao passo que “quê” (pronome interrogativo) significa “que motivo”, originando portanto “porquê” com o significado “por que motivo”, “que” (conjunção causal) significa “causa de”, o que origina “porque” com o significado “por causa de”. Apesar da semelhança entre as palavras, elas significam coisas muito diferentes e têm que ter, por isso mesmo, funções muito diferentes.
2) Toda a pergunta que implica uma causa, iniciada pelo advérbio interrogativo "por que", verifica uma elipse de um substantivo (ex. "razão", "motivo", etc.). Assim, o "que" é relativo a esse substantivo e determina-o. Ou seja, todo o “que”, quer esteja junto a um substantivo ou não, é aquilo a que se chama um pronome interrogativo adjunto. Perguntar "Por que é que não vieste?" é igual a perguntar "Por que razão é que não vieste?". Esta elipse não acontece apenas neste caso. Em qualquer locução adverbial, formada por uma preposição e pelo pronome interrogativo “que”, isto pode acontecer. Por exemplo, perguntar “Com que armas vais para a guerra?” é o mesmo que perguntar “Com que vais para a guerra?” O substantivo “armas” está implícito porque a preposição “com” contém em si mesma um valor instrumental. Perguntar “Em que argumento consiste a tua defesa?” é o mesmo que perguntar “Em que consiste a tua defesa?”. O substantivo “argumento” está implícito porque a preposição “em” contém em si mesma um determinado valor que faz com que a ocorrência desse substantivo não seja absolutamente necessária. O mesmo acontece com a preposição “por”. Em frases como “Por que não vieste?” o substantivo que denota causa (seja “motivo”, seja “razão”, seja outro) está implícito porque a preposição “por” contém em si mesma um valor causal. Este tipo de elipse, como se demonstra, ocorre com frequência em locuções formadas por preposições e o pronome interrogativo “que”, logo não pode ser ignorada.
3) Toda a pergunta introduzida por um advérbio interrogativo (“porquê”) ou pela locução adverbial correspondente (“por que”) pode ser formulada de outra forma, fazendo uso apenas de um pronome interrogativo. Assim, perguntar “Não vieste porquê?” ou “Por que não vieste?” é equivalente a perguntar “Que te impediu de vir?” ou “Que razão te impediu de vir?” ou “Qual a razão de não teres vindo?”. Todas estas formas de perguntar pelas causas de determinados acontecimentos implicam o uso de um pronome interrogativo. Não faz, por isso, sentido usar “porque” (preposição + conjunção causal) com um valor de “porquê” (preposição + pronome interrogativo), em detrimento de “por que” (preposição + pronome interrogativo).
4) Julgo que o principal problema em relação a esta questão se deve ao uso restritivo do nosso advérbio interrogativo de causa, o “porquê”. Ao contrário do que se passa nas restantes línguas latinas, ou mesmo nas línguas anglo-saxónicas, o nosso advérbio interrogativo de causa por excelência não pode ser usado em todos os contextos. Assim, “porquê”, em início de frase, só se não tiver verbo expresso ("Porquê estas perguntas?") ou se o verbo estiver no infinitivo ("Porquê fazer contas de cabeça?"). De qualquer forma, pode sempre ser usado no fim da frase ("Não vieste porquê?"). Como referi anteriormente, creio que isto acontece apenas em português pelo carácter peculiar da acústica da nossa língua. Em determinada altura, portanto, o "porquê", enquanto advérbio interrogativo de causa único, terá caído em desuso e dado lugar à forma átona por uma questão de prosódia. Devido a esta restrição, tornou-se necessário recorrer a outra construção para interrogar sobre as causas de determinada coisa. E é a partir daqui que temos de raciocinar. “Porquê” significa “por que razão” e não “por causa de”, que é o significado de “porque”. Logo, a substituição de “porquê” tem de ser por “por que razão”. Aliás, é esse o caso em outras línguas. Em inglês, o “Why” (“porquê”) pode ser substituído pela construção “for what reason”; em italiano, o “perché” (“porquê”) pode ser substituído pela construção “per quale motivo” ou “per quale ragione”. No caso do espanhol, nem sequer existe um advérbio interrogativo de causa (existe a locução “por qué”, como acontece no português do Brasil). A substituição do advérbio de causa, nas outras línguas, resulta sempre numa locução adverbial formada pela preposição correspondente a “por” e por um pronome interrogativo. Por que razão deveria ser diferente em português? Ou melhor, que necessidade teria o português de ser diferente? Uma vez que é necessária uma alternativa a “porquê”, devido ao uso restrito a que está submetido, a forma correcta é precisamente a locução, como acontece nas outras línguas.
5) Presumir que “porque” pode funcionar como advérbio interrogativo de causa é presumir que significa o mesmo que “porquê”, ou seja, que significa “por que razão”. Substituindo frases em que temos “porquê” por “por que razão”, continuamos a ter uma frase válida: “Porquê todas estas perguntas?” é igual a “Por que razão todas estas perguntas?” e “Não vieste porquê?” é igual a “Não vieste por que razão?”. Mas tanto “Porque todas estas perguntas?” como “Não vieste porque?” não fazem sentido. Aqui poderia alegar-se que “por que” também não faz sentido em final de frase: “Não vieste por que?”. A resposta a isto consiste em dizer que a elipse do substantivo “razão” não é permitida em todas as circunstâncias (na frase “Por que todas estas perguntas?” também não funcionaria). Mas isso significa apenas que não é possível elidir sempre o substantivo. E isso não é diferente do que se passa com outras locuções adverbiais com outras preposições. A frase “De que material é feito este tecido?” pode ser expressa por “Este tecido é feito de que material?”. Ao passo que a elipse do substantivo “material”, na primeira frase, não altera a inteligibilidade da mesma (“De que é feito este tecido?”), na segunda torna-a agramatical (“Este tecido é feito de que?”), sendo que a forma correcta, aqui, seria “Este tecido é feito de quê?”. Tal como “de quê” só pode ser substituído por “de que material”, “porquê” só pode ser substituído por “por que razão”.
6) Todos os advérbios interrogativos (porquê, como, onde e quando) podem ser substituídos por expressões formadas por uma preposição, pelo pronome interrogativo e por um substantivo. Assim, “porquê” pode ser substituído por “por que razão”, “como” pode ser substituído por “de que modo”, “onde” pode ser substituído por “em que lugar” e "quando" pode ser substituído por “em que altura”. Todos eles têm, na sua essência, uma preposição e um pronome interrogativo. Não é o caso de “porque”, que pode ser substituído por “por causa de”.
7) Todos estes advérbios interrogativos, bem como a forma pela qual podem ser substituídos, funcionam em fim de frase. “Isto aconteceu porquê?” é igual a “Isto aconteceu por que razão?”; “Como aconteceu isto?” é igual a “Isto aconteceu como?” e igual a “Isto aconteceu de que modo?”; “Onde aconteceu isto?” é igual a “Isto aconteceu onde?” e igual a “Isto aconteceu em que lugar?”; “Quando aconteceu isto?” é igual a “Isto aconteceu quando?” e igual a “Isto aconteceu em que altura?”. Se “porque” fosse um advérbio interrogativo, como estes quatro, deveria poder funcionar como eles. Mas não funciona. Em final de frase, torna-a agramatical: “Isto aconteceu porque?” ou “Isto aconteceu por causa de?” não funcionam.
8) Presumir que a conjunção causal “porque” possa ter um valor interrogativo, ou seja, ser formada não por preposição + conjunção causal, mas sim por preposição + pronome interrogativo, seria presumir que se pudessem formar outros advérbios interrogativos através da junção entre uma preposição e um pronome interrogativo. E a verdade é que isso não acontece. Temos até, aliás, várias conjunções que poderiam funcionar como advérbio interrogativo, da mesma maneira segundo a qual parecem querer que o “porque” funcione. “Porquanto” (conjunção causal), “conquanto” (conjunção concessiva) e “enquanto” (conjunção temporal) poderiam passar, então, a ter um estatuto de advérbio interrogativo. Se estas três conjunções não servem para introduzir interrogações, sendo estas introduzidas pela locução adverbial composta pela preposição e pelo pronome interrogativo “quanto”, por que razão o “porque” deverá servir para esse efeito? As perguntas “Por quanto (tempo) perdemos o autocarro?”, “Com quanto açúcar se faz este bolo?” e “Em quanto vai o resultado?” funcionam do mesmo modo que uma pergunta sobre causas como “Por que fizeste isso?”. Se numas a locução adverbial é suficiente, por que razão não haveria, no caso da expressão de causa, de ser igualmente suficiente?
9) Há, tanto quanto sei, três formas de introduzir perguntas em português: através de pronomes interrogativos (que, qual, quem e quanto), através de advérbios interrogativos (porquê, como, onde e quando) e através de locuções adverbiais (preposição + pronome interrogativo). Em nenhum dos casos em que a locução adverbial é formada pela preposição “por” acontece esta formar um advérbio: “Por quanto decidiste vender o carro?”; Por quem te decidiste?”; “Por qual dos compradores te decidiste?”. Assim, associada aos pronomes interrogativos “quanto”, “quem” e “qual”, a preposição “por” mantém a sua autonomia. Logo, não faz sentido que esta, quando associada a “que” perca essa autonomia. A frase correcta é: “Por que decidiste vender o carro?”. O mesmo acontece em relação ao pronome interrogativo “que”. Em nenhum dos casos em que a locução adverbial é formada pelo pronome interrogativo “que” acontece este formar um advérbio: “Com que dinheiro compraste o carro?”; “Sob que expectivas compraste o carro?”; “De que modo compraste o carro?”; “Em que altura compraste o carro?”. Associado a qualquer outra preposição, o pronome interrogativo “que” mantém a sua autonomia. Logo, não faz sentido que este, quando associado a “por” perca essa autonomia. A frase correcta é: “Por que compraste o carro?” A existência de “porque” enquanto advérbio interrogativo de causa seria uma excepção demasiado excepcional, se me é perdoado o pleonasmo.
10) Todos estes argumentos reforçam a ideia de que não é necessário um advérbio interrogativo de causa para além do nosso “porquê”. O uso restrito de “porquê” faz com que seja necessário, em alguns casos, introduzir uma interrogação de causa através de outro mecanismo. A existência da locução adverbial “por que”, porém, satisfaz essa necessidade. Assim, não é necessário que "porque" passe a ter um valor interrogativo quando temos "por que".
11) Chegou a altura de tentar refutar o mais consistente dos argumentos a favor (argumento esse curiosamente referido por mim) tarefa que adiei por se tratar de algo mais delicado. Não posso negar, sem antes demonstrar algo, que “que” não significa o mesmo que “quê”, sendo usado em circunstâncias diferentes. Assim, “O que disseste?” é igual a “Disseste o quê?”. No entanto, quando associado a uma preposição, “quê” distingue-se claramente de “que”. Assim, a frase “Compraste o carro com quê?” só pode ser substituída por “Com que dinheiro compraste o carro?”. A locução adverbial “com quê” significa “com + que + substantivo”, quer o substantivo esteja explícito quer não. Noutro exemplo, a frase “Baseias-te em quê?” só pode ser substituída por “Em que (evidências) te baseias?”. Embora esta frase funcione sem o substantivo, é evidente que ele está implícito. Em construções deste tipo, percebemos que há uma diferença clara entre “quê” e “que”. Em final de frase, a locução formada por uma preposição + pronome interrogativo “quê” não pode ser substituída por uma locução idêntica na qual o pronome seja “que”: “Compraste o carro com que?” e “Baseias-te em que?” são frases agramaticais. Para manter a sua validade, tem de se substituir a locução formada pela preposição + pronome interrogativo “quê” por uma locução formada pela mesma preposição + pronome interrogativo “que” + substantivo. Assim, já seriam válidas as frases “Compraste o carro com que dinheiro?” ou “Baseias-te em que evidências?” Esta distinção é fundamental. “Quê” significa “que coisa” ou “que + substantivo”, podendo ser substituído por essas formas. Dizer “Disseste o quê?” é igual a dizer “Disseste que coisa?” (repare-se que a frase “Disseste que?”, consistindo na simples substituição do pronome, é agramatical). Desta forma, os dois pronomes significam coisas diferentes. Se assim é, cai por terra o derradeiro argumento que tornaria aceitável (tal como é aceitável ter os dois pronomes interrogativos “quê” e “que”) dois advérbios interrogativos de causa (“porquê” e “porque”), uma vez que os dois significam coisas diferentes: “porquê significa “por + que coisa” ou “por + que + substantivo”. Qualquer defesa de um “porque” interrogativo tem obrigatoriamente de defender, como premissa essencial, que “porque” possa ter o mesmo significado que “porquê”, mas isso não acontece.
Depois de tudo isto, penso que não restam dúvidas de que o “porque” interrogativo consiste num erro, erro esse potenciado pela semelhança entre as palavras. Não há, para além de estipulações arbitrárias e irreflectidas, um único argumento que justifique de forma lógica a atribuição de um valor interrogativo à conjunção “porque”, pelo que a forma correcta de substituir “porquê” só pode ser a locução adverbial “por que (razão)”.
Por fim, queria pedir desculpa pela extensão exagerada do texto, ainda que o grau de polémica que envolve esta questão lhe seja directamente proporcional.
Peço desculpa pela demora em publicar o comentário. A "censura" existe apenas para evitar palavras ordinárias e ofensivas, desde que isso aconteceu (quando não havia moderação de comentários).
Com certeza. Imaginei que fosse essa a causa. O tamanho do comentário também não terá ajudado.
Maia por intuição do que por conhecimentos de causa, sempre utilizei "por que" e nunca o "porque" em perguntas.
Estes esclarecimentos vêm reforçar a minha convicção de o fazer correctamente.
Aprende-se muito por aqui. Obrigada
Caro Nuno,
apreciei todos os seus argumentos, mas fiquei então com esta dúvida:
estabelecido que porquê significa “por + que coisa” e que "porque" significa “por causa de”, em perguntas como a seguinte "Porquê è que te foste embora" temos de usar porquê e não porque ("Por que coisa è que te foste embora" faz sentido; "por causa de è que te foste embora" não faz sentido).
Concorda comigo ou estou a pensar mal? Eu (italiano) escrevo sempre porquê e os portugueses corrigem-me sempre...
Muito obrigado e até breve.
Paolo
Em português brasileiro, temos "por que", "porque", "por quê" e "porquê".
Usamos "por que" em perguntas. Por exemplo: Por que você não estudou?
Usamos "porque" em respostas. Por exemplo: Porque estava cansado. Não estudei porque estava cansado.
Usamos "por quê" em final de frases, como advérbio interrogativo de causa (diferentemente de como explicou Nuno, no item 9 dos argumentos a favor, que disse usar "porquê"). Exemplo de uso: Mas por quê? (significando: mas por qual motivo?)
Usamos "porquê" quando este porquê é um substantivo. Por exemplo: Não sei o porquê de tanto auê!
Existem outras variações de usos dos "porquês". Deixo aqui dois links do assunto em português brasileiro:
http://www.brasilescola.com/gramatica/por-que.htm
http://www.infoescola.com/portugues/adverbios-interrogativos/
Repare, no entanto que "Que disseste não é agramatical". Claramente a distinção evidente entre que e quê é a posição da palavra na frase. Tanto porquê como quê não podem ser seguidas de um verbo. De resto, compreendendo esta lógica, não é mais falaciosa do que a primeira.
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