Ingredientes: muitos erros, bastantes dúvidas e uma mão-cheia de reflexões. Juntam-se esclarecimentos, correcções e sugestões em quantidade generosa. Tudo polvilhado com bom humor. Porque queremos partilhar a nossa maneira de saborear a língua!
24 outubro 2012
Ai, que confusão!
Se há um caso em que o A.O. vem confundir quem precisa de ler ou escrever certas palavras, além do clássico para que fica igual a para (leram com a pronúncia certa? Pára fica igual a para...), esse caso - que para mim é o piorzinho de todos - é o de interceção / interseção / intercessão. Não é uma confusão?
Quem queira escrever uma destas palavras vai ter de parar para pensar, a menos que esteja muito treinado, e talvez até grafá-las primeiro com as consoantes mudas, aparentemente inúteis mas muito jeitosas para ajudar a distinguir estes três parónimos:
interceção - ou intercepção, é o acto de interceptar, ou seja, de interromper alguma coisa
interseção - ou intersecção, é o acto de cruzar, ou de interseccionar - duas linhas, por exemplo
intercessão - que não tinha nenhuma consoante muda, é o acto de interceder, de intervir.
Esta alternância entre esses e cês pode realmente funcionar como uma armadilha... e as consoantes mudas ali estavam para nos ajudar a identificar a grafia certa em cada caso. Agora, teremos de nos resignar a visualizar uma consoante invisível, além de muda. Pela positiva, podemos encarar isso como uma confirmação de que, como se aprende no Principezinho de Saint-Exupéry, «o essencial é invisível aos olhos»...
15 outubro 2012
Sobre a palavra "piegas"
O adjectivo piegas pertence ao registo popular ou
familiar, ou seja, é utilizado sobretudo nas situações em que estamos à vontade
com o interlocutor, ou pelo menos em que pretendemos estabelecer uma certa
familiaridade ou cumplicidade com quem nos ouve.
O significado é
claramente depreciativo e prende-se com dois “defeitos”, por assim dizer, e que
não estão necessariamente ligados à ideia da lamentação ou do pessimismo.
Por um lado, o exagero: piegas é
excessivamente sentimental, revela sentimentos exacerbados, embaraça-se com
coisas insignificantes, chora muito, ou assusta-se facilmente. São estas as
possibilidades de significado da palavra piegas atestadas nos dicionários de língua portuguesa. Por outro lado, transparece desses sentidos também a questão do ridículo:
uma pessoa piegas torna-se risível, porque tem uma postura
patética, de certo modo imatura – e também é por isso que o significado da
palavra é depreciativo.
A sua origem
etimológica é obscura: José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, diz-nos que as hipóteses até agora
levantadas não são convincentes. Em todo o caso, trata-se de um vocábulo
relativamente recente na nossa língua, ele próprio acrescenta que não encontra
vestígios muito anteriores ao século XIX. E cita uma das primeiras ocorrências do
termo na escrita literária, que como não podia deixar de ser é de Camilo
Castelo Branco (1868). No romance A Filha
do Arcediago, no cap. 4, p. 31, o
narrador faz este comentário, que José Pedro Machado cita no dicionário: « O que elle sentia
então, se eu podésse sentil-o agora, escreveria tres volumes em quarto, que o
leitor me compraria, e a minha reputação de piegas amoroso estava feita.»
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa tem uma entrada
para o antepositivo pieg-, que segundo
esta fonte constitui uma palavra «expressiva» e «isolada em português». Diz-nos
também que, embora as primeiras documentações sejam do século XIX, rapidamente
deu origem a várias palavras com a mesma raiz: piegueiro, pieguento, pieguice, pieguismo e pieguístico. Vê-se,
então, que é uma palavra bastante popular e que tem pano para mangas, como se
costuma dizer, se quisermos usar todas as variantes…!