Quando certas palavras se pronunciam de forma idêntica ou muito semelhante, há dúvidas que podem surgir apenas no momento em que nos vemos obrigados a escrever aquilo que apenas costumamos dizer. Então, o que nos confunde são os chamados parónimos: pares de vocábulos cujo significado é perfeitamente distinto, mas que pela forma se aproximam, como descriminado / discriminado, intersecção / intercessão, caçar / cassar, despensa / dispensa, elação / ilação, entre tantos outros.
No caso de nos sentirmos surpreendidos, perplexos, atónitos, fulminados, "esmagados" por alguma coisa que experimentamos ou testemunhamos, o que devemos escrever: que estamos cidrados ou siderados?
A grafia certa é siderados. Vem do verbo latino siderāre, cujo significado é «sofrer a influência dos astros», como refere a Infopédia (daí a afinidade com sideral, relativo ao céu ou aos astros).
A forma participial "cidrados" só poderia vir do verbo cidrar, por sua vez derivado de cidra, o fruto da cidreira. Embora exista o substantivo cidrada, que é um doce feito com cidras, o verbo cidrar não se encontra atestado. Isso não nos impede de o usarmos, se for necessário. Porém, o seu uso deve reservar-se às situações em que uma pessoa ou coisa seja porventura esmagada por uma cidra...
Ingredientes: muitos erros, bastantes dúvidas e uma mão-cheia de reflexões. Juntam-se esclarecimentos, correcções e sugestões em quantidade generosa. Tudo polvilhado com bom humor. Porque queremos partilhar a nossa maneira de saborear a língua!
30 março 2012
26 março 2012
O correto e o incorreto: entre as duas balizas
A dicotomia correto/incorreto tem sido uma questão amplamente debatida na literatura, encontrando defensores, mas também muitos opositores.
De um lado, situam-se os normativos, puristas da língua, cuja correção linguística decorre do rigoroso cumprimento da norma escrita, fundada no exemplo dos clássicos da literatura. De outro lado, situam-se os linguistas descritivos, que privilegiam a variação linguística, com base na frequência do uso e cuja máxima é “o povo é quem faz a língua”. Porém, como sabemos, ao invés de criador da língua, o povo é, sim, um utilizador e recetor de tudo o que ouve e lê.
Tarefa difícil é a de quem, como eu, se encontra entre as duas balizas. Enquanto linguista, cabe-me a missão de observar e descrever os diferentes aspetos da língua, a sua variação, mudança, idiossincrasias e, enquanto professora, a missão de prescrever e veicular a norma.
Mas que norma? Afinal, o que é a norma?
Eugenio Coseriu definiu norma como "o conjunto de traços linguísticos distintos impostos por uma tradição cultural e social que se torna a referência para toda a comunidade linguística, sendo ensinada na escola e veiculada pelos meios de comunicação social, os quais, para serem entendidos pelo grande público devem veicular precisamente essa norma-padrão".
A norma é, assim, o resultado do processo segundo o qual uma variedade social, convertida em língua padrão, se torna num meio público de comunicação: a escola e os meios de comunicação passam a controlar a observância da sua gramática, da sua pronúncia e da sua ortografia.
E quem fixa a norma? Quem se atreve a exercer o papel de “tribunal” da língua?
Outrora, no séc. XVI, a norma estava na Corte, de cujos membros se aprendia o uso correto da linguagem. No séc. XIX, por sua vez, a norma emanava de Coimbra, berço da primeira Universidade.
Atualmente, a norma-padrão parece ser aquela que a Escola (todo o Ensino) e os meios de comunicação social – televisão, rádio e imprensa – difundem.
Mas com base em quê? Nos dicionários e nas gramáticas de referência? Nos autores literários? Nos escritores?
Para justificar as regras que prescrevem, as gramáticas normativas apoiam-se em larga medida nas atestações dos escritores. Quando as consultamos, ficamos felizes por constatar que uma dada estrutura sintática sobre a qual tínhamos dúvidas é afinal legítima, porque um grande autor a utilizou nas suas obras.
A verdade é que os escritores também têm dúvidas, como muito bem observou o professor Ivo de Castro no artigo intitulado O Linguista e a Fixação da Norma (2002) [in Actas do XVIII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa], contando a seguinte história passada com o escritor Augusto Abelaira:
«Incerto quanto a uma construção sintática infelizmente não identificada, pegou na Nova Gramática do Português Contemporâneo para verificar se ela estava atestada; estava, mas atestada por uma citação do próprio Abelaira. Se Celso Cunha e Lindley Cintra estivessem cientes das hesitações de Abelaira, teriam mantido a citação? E, sem ela, a regra? O que um escritor escreve, porventura desviadamente, torna-se logo português de lei?».
Daqui se conclui que a norma é como uma prancha de surf, tentando servir de plataforma firme num mar instável que é a língua.
Esta metáfora quer tão-somente dizer que falta em Portugal uma Autoridade da Língua com força de lei e cuja missão fosse a de esclarecer os falantes sobre a pronúncia das palavras, a adaptação de estrangeirismos, algumas estruturas sintáticas mais complexas, os diferentes valores semânticos que as palavras vão assumindo; que estabelecesse a fronteira entre o erro e a variante linguística...
Enfim, que se ocupasse de todas as questões inerentes a uma língua viva, como é a língua portuguesa!
De um lado, situam-se os normativos, puristas da língua, cuja correção linguística decorre do rigoroso cumprimento da norma escrita, fundada no exemplo dos clássicos da literatura. De outro lado, situam-se os linguistas descritivos, que privilegiam a variação linguística, com base na frequência do uso e cuja máxima é “o povo é quem faz a língua”. Porém, como sabemos, ao invés de criador da língua, o povo é, sim, um utilizador e recetor de tudo o que ouve e lê.
Tarefa difícil é a de quem, como eu, se encontra entre as duas balizas. Enquanto linguista, cabe-me a missão de observar e descrever os diferentes aspetos da língua, a sua variação, mudança, idiossincrasias e, enquanto professora, a missão de prescrever e veicular a norma.
Mas que norma? Afinal, o que é a norma?
Eugenio Coseriu definiu norma como "o conjunto de traços linguísticos distintos impostos por uma tradição cultural e social que se torna a referência para toda a comunidade linguística, sendo ensinada na escola e veiculada pelos meios de comunicação social, os quais, para serem entendidos pelo grande público devem veicular precisamente essa norma-padrão".
A norma é, assim, o resultado do processo segundo o qual uma variedade social, convertida em língua padrão, se torna num meio público de comunicação: a escola e os meios de comunicação passam a controlar a observância da sua gramática, da sua pronúncia e da sua ortografia.
E quem fixa a norma? Quem se atreve a exercer o papel de “tribunal” da língua?
Outrora, no séc. XVI, a norma estava na Corte, de cujos membros se aprendia o uso correto da linguagem. No séc. XIX, por sua vez, a norma emanava de Coimbra, berço da primeira Universidade.
Atualmente, a norma-padrão parece ser aquela que a Escola (todo o Ensino) e os meios de comunicação social – televisão, rádio e imprensa – difundem.
Mas com base em quê? Nos dicionários e nas gramáticas de referência? Nos autores literários? Nos escritores?
Para justificar as regras que prescrevem, as gramáticas normativas apoiam-se em larga medida nas atestações dos escritores. Quando as consultamos, ficamos felizes por constatar que uma dada estrutura sintática sobre a qual tínhamos dúvidas é afinal legítima, porque um grande autor a utilizou nas suas obras.
A verdade é que os escritores também têm dúvidas, como muito bem observou o professor Ivo de Castro no artigo intitulado O Linguista e a Fixação da Norma (2002) [in Actas do XVIII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa], contando a seguinte história passada com o escritor Augusto Abelaira:
«Incerto quanto a uma construção sintática infelizmente não identificada, pegou na Nova Gramática do Português Contemporâneo para verificar se ela estava atestada; estava, mas atestada por uma citação do próprio Abelaira. Se Celso Cunha e Lindley Cintra estivessem cientes das hesitações de Abelaira, teriam mantido a citação? E, sem ela, a regra? O que um escritor escreve, porventura desviadamente, torna-se logo português de lei?».
Daqui se conclui que a norma é como uma prancha de surf, tentando servir de plataforma firme num mar instável que é a língua.
Esta metáfora quer tão-somente dizer que falta em Portugal uma Autoridade da Língua com força de lei e cuja missão fosse a de esclarecer os falantes sobre a pronúncia das palavras, a adaptação de estrangeirismos, algumas estruturas sintáticas mais complexas, os diferentes valores semânticos que as palavras vão assumindo; que estabelecesse a fronteira entre o erro e a variante linguística...
Enfim, que se ocupasse de todas as questões inerentes a uma língua viva, como é a língua portuguesa!
09 março 2012
"Quem Tem Medo do Acordo Ortográfico?"

O título acima foi o que demos a uma comunicação que fomos fazer ontem à Escola Básica 2 3 D. Pedro IV, em Queluz.
A pedido da responsável pela organização do evento anual Semana da Leitura, o tema foi o do Acordo Ortográfico. E como a turma que iria assistir à nossa apresentação já tinha aprendido, com a professora de Português, quais são as mudanças implicadas, optámos por levar-lhes alguns exercícios que suscitassem dúvidas e os nossos esclarecimentos.
A sessão correu bem, os meninos e meninas do 5.º ano estiveram extremamente atentos e foram muito participativos. As perplexidades foram surgindo e os porquês começaram a fazer-se ouvir. A cada regra que enunciávamos, para a eliminação de acentos ou para a utilização do hífen, surgia, de imediato, a excepção evidente e desconcertante. No final, e propositadamente, mostrámos-lhes um texto escrito numa grafia pós-acordo que, em vez de ser una e inequívoca, era escandalosamente mista e incompatível: uma "salada" de português europeu e português do Brasil. A ideia era que percebessem que, apesar de tudo, o Acordo não nos obriga a nós a escrever "brasileiro" nem aos brasileiros a escrever conforme a grafia de Portugal. A certa altura, uma professora pergunta: «então se eu escrever "perspectiva" estarei a cometer um erro ou não?». Explicámos que em Portugal perspectiva não é aconselhado, ao passo que no Brasil é a grafia certa, pois lá pronuncia-se o [k] antes do t. «E se eu estiver no meio do Atlântico?», brincou ela.
E eu tive vontade de nunca mais me dispor a prestar esclarecimentos sobre um absurdo.
05 março 2012
Desafio linguístico
Existe alguma incorreção na frase que se segue?
«A maioria dos adeptos benfiquistas saiu do estádio com a moral em baixo!»
«A maioria dos adeptos benfiquistas saiu do estádio com a moral em baixo!»